A formação e trabalho do filósofo e do professor de filosofia

O Pensador, de Rodin
Filósofo é aquele que lida sistematicamente com problemas filosóficos, com perguntas de natureza filosófica, cuja resposta é encontrada por meio de uma investigação ou pesquisa filosófica e justificada por meio de argumentos. (Para uma concepção da natureza dos problemas filosóficos, leia este texto.) Um filósofo pode ter uma formação superior em filosofia ou não. Os filósofos profissionais normalmente trabalham como professores de filosofia, porque não há muitas outras opções profissionais para um filósofo, para se dizer o mínimo.

No Brasil são oferecidas duas formações básicas para filósofos profissionais no ensino superior: licenciatura e bacharelado. A diferença básica entre elas é que a licenciatura é voltada para a formação de de filósofos que sejam professores de filosofia, os quais podem trabalhar como professores no ensino médio e fundamental. Por essa razão, a licenciatura possui disciplinas de natureza essencialmente didática, além das disciplinas de natureza filosófica. O bacharelado é voltado à formação de pesquisadores em filosofia, que tenham interesse de continuar sua formação nos cursos de pós-graduação estritu sensu: cursos de mestrado e de doutorado. No bacharelado não há disciplinas didáticas, mas apenas filosóficas. Todavia, aquele que tem formação em cursos de pós-graduação em filosofia poderá lecionar filosofia no ensino superior. Algumas vezes há concursos em universidades públicas que exigem apenas mestrado como grau mínimo da formação dos candidatos a uma vaga de professor. Mas hoje em dia isso está se tornando cada vez mais raro. Normalmente se exige o doutorado como grau mínimo de formação dos candidatos.

Pesquisa

Há basicamente três tipos de pesquisa acadêmica que um filósofo pode realizar. Sua pesquisa pode ser voltada ou para lidar com problemas filosóficos propriamente ditos, ou para lidar com problemas histórico exegéticos relativos à obra de algum filósofo (ou grupo de filósofos), ou para lidar com uma combinação de problemas dos dois primeiros tipos, tal como quando alguém oferece uma interpretação e defesa do que algum filósofo disse. Nenhum desses tipos de pesquisa é mais importante que o outro, apenas são diferentes, têm importâncias diferentes. (Para uma explicação sobre a natureza, diferenças e relações entres esses tipos de problemas, leia este texto.) No Brasil, infelizmente, a pesquisa em torno de problemas histórico-exegéticos tem sido muito mais estimulada, em detrimento da pesquisa em torno de problemas filosóficos, embora esse desequilíbrio esteja sendo eliminado aos poucos nas últimas décadas.

Uma pesquisa acadêmica se inicia com um projeto de pesquisa. Nesse projeto, o autor apresenta no mínimo os seguintes itens: um problema ou conjunto de problemas a serem tratados; uma hipótese ou conjunto de hipóteses apresentadas como uma tentativa de solução desses problemas; a justificação para a pesquisa, que mostra a sua importância para a filosofia ou para a história da filosofia; a metodologia usada na pesquisa, que pode variar conforme o modo como se concebe a natureza de uma investigação filosófica ou da historia da filosofia; a bibliografia básica que será usada na pesquisa. Normalmente se apresenta um cronograma de atividades também. Mas a experiência mostra que é muito difícil se manter fiel a ele. Seja como for, esse conjunto de itens deixa claro o quão errada está uma certa maneira ingênua de entender uma pesquisa acadêmica em filosofia. Uma pesquisa em filosofia não consiste em simplesmente escolher um tópico, ler sobre ele e, depois de ler muito, ir escrevendo, até que se tenha a impressão de que já se disse o suficiente sobre o tópico "estudado". (Para uma análise da enganadora ênfase que se dá à leitura nos estudos filosóficos, em detrimento da escrita, leia este texto.)

O resultado da pesquisa em filosofia é um texto. Quando se trata de pesquisa de formação, esse texto recebe denominações distintas conforme o grau da formação: monografia, quando é uma pesquisa feita na graduação, dissertação, quando é uma pesquisa feita no mestrado, e tese, quando é uma pesquisa feita no doutorado.

O que geralmente é avaliado quando se avalia o resultado de uma pesquisa varia um pouco conforme o grau de formação. Eles geralmente são os seguintes: capacidade de apresentar um problema; capacidade de apresentar algumas das principais tentativas de solucionar esse problema; capacidade lógico-argumentativa para justificar afirmações, o que inclui a clareza e a boa estruturação do texto; capacidade exegética, de análise de textos; conhecimento da literatura básica sobre o assunto, completude, concisão, e outros.

Não se exige que o resultado da pesquisa na graduação e no mestrado ofereça algum tipo de contribuição original para a filosofia ou para a história da filosofia, embora isso não seja proibido, é claro. Mas o resultado de uma pesquisa de doutorado deve apresentar algum tipo de contribuição original, por mínima que seja. Esse tipo de contribuição varia conforma a natureza da pesquisa, seja histórico-exegética, seja filosófica. Essa contribuição pode ser puramente negativa, quando se trata apenas de mostrar que o que outro filósofo defendeu está, de alguma forma, errado. Ela também pode ser a apresentação mais clara de uma certo problema, de um certo argumento, de uma certa teoria. Ela pode ser a apresentação de um problema até então não formulado. Mas a contribuição também pode ser mais substancial, com a apresentação de um problema, acompanhada de uma proposta argumentada de solução e uma defesa da superioridade dessa solução frente a solução oferecida por outros filósofos.

Os resultados das pesquisas filosóficas também são publicados em forma de artigos, capítulos de livros e livros. A publicação de artigos em periódicos especializadas de qualidade segue o seguinte roteiro: o artigo é submetido ao periódico sem identificação do autor no corpo do texto; ele é enviado a pareceristas que avaliam o texto com base numa série de critérios, o parecer dos pareceristas é comunicado ao autor. Esse parecer pode variar: pode ser ou a recomendação para que o texto seja publicado como está, ou um pedido de revisão do texto para a publicação, ou a rejeição pura e simples do texto.

Mas antes de publicar os resultados de pesquisas, o pesquisador tem a oportunidade de divulgar resultados parciais ou finais em eventos, tais como congressos, colóquios, workshops, etc. Estas são ótimas ocasiões para que o pesquisador receba uma avaliações críticas do seu trabalho e possa, com base nelas, melhorá-lo antes de submeter à publicação.

Ensino

Um bom professor de filosofia é aquele que domina minimamente o assunto que leciona. Por isso, um bom professor de filosofia é um bom pesquisador em filosofia, o que implica estar atualizado sobre os principais resultados das pesquisas de outros pesquisadores. Mas nem sempre um bom pesquisador em filosofia é um bom professor de filosofia. Pesquisar e ensinar são duas habilidades diferentes. A segunda é condição necessária para a primeira, mas não suficiente.

Uma aula de filosofia não é o mesmo que uma palestra, mesmo que seja uma aula para o doutorado de filosofia. Por isso, ela não pode consistir na simples leitura de um texto. Esse erro é cometido com alguma frequência na prova didática em concursos para professor. O nome da prova já está dizendo a sua natureza: nela são avaliadas as qualidades didáticas do candidato, não a capacidade de dar uma palestra. Ele tem que demonstrar que sabe ensinar filosofia (o que implica saber ensinar a filosofar).

Eu costumo usar uma metáfora para explicar a relação entre a aula de filosofia e o resto das atividades formativas do aluno de filosofia. A aula de filosofia é a ponte de um iceberg. Ela é a parte das atividades formativas do aluno mais visível, mas é a menor e dependente das demais, que são leituras, anotações, redações de textos, etc. Uma aula deve ser a ocasião para que ocorra principalmente o seguinte: que o aluno tenha a oportunidade de assistir a uma exposição didática do conteúdo da disciplina e, principalmente, possa tirar dúvidas sobre esse conteúdo.

As melhores aulas de filosofia são aquelas em que se ensina o aluno a realizar a atividade de filosofar, em que dá a conhecer um problema filosófico para o qual ele é estimulado a refletir para procurar uma solução. Isso não se faz sem fazer muitas perguntas estratégicas. Ensinar a filosofar exige filosofar em voz alta, convidando o aluno a pensar por sua conta e risco sobre os problemas propostos. Claro que ele deve estar bem informado, por meio da leitura de uma bibliografia mínima, sobre o debate que aconteceu sobre esses problemas até então. Aulas de história da filosofia têm uma natureza diferente, mas elas exigem também habilidade filosófica, pois, afinal, é a história do debate em torno dos problemas filosóficos.


2 comentários:

  1. Texto excelente e esclarecedor, meu amor. O tópico de pesquisa me ajuda a direcionar o quarto capítulo da minha tese. Obrigada pelo texto, pelo blogger...por tudo! (:

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